Mickey, também escreveu a minha infância – Por Antonio Gonzalez

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Mickey, também escreveu a minha infância

Segundos depois de receber a notícia do falecimento do Mickey, a imagem do meu Pai, me veio à cabeça: nosso abraço apertado nas arquibancadas do Maracanã (escrevo essas palavras chorando de saudades Dele).

E como escrever sobre o Mickey e falar da importância dele? Há anos escrevi um livro (“Assim nasce um Guerrilheiro Tricolor”) com o olhar da infância que vivi.

É um texto longo. Mas hoje é domingo, o Fluzão ganhou ontem, está um friozinho que não apetece sair de casa.

Divirta-se e SALVE MICKEY!

“Paz, amor, vitória!

Quatro jogos e dois pontos depois, surge o Mickey. O Flávio, que havia, cumprido suspensão, se machuca. Nessa onda, chegávamos na última rodada no campeonato regular. Jogaríamos no domingo contra o Atlético Paranaense, o que nos fez azarar em cadeia nacional naquele sábado à noite o time do Fio, do Onça, do Caldeira e um goleiro excêntrico. Para a época, o Ubirajara que era o goleiro dos caras, era o metrossexual de turno, ineditismo distante dos preceitos e preconceitos da época: negro, bonito, pintoso, estiloso, jogador de futebol e que comia mulher branca. E isso irritava à sociedade da época. As baterias eram apontadas, inclusive pela torcida do cara, para ele. E isso servia de contraponto para que a Flapress da época, com a Marilene Dabus de (primeira mulher a cobrir futebol e posteriormente ser Assessora de Imprensa do clube dos remadores que não nasceram futebol) escondesse a verdade em questão. Tirando o Doval e o promissor (não passou disso) Zanata, o time cujo astro era o dentuço Fio, fazia um campeonato brasileiro aos trancos e barrancos, dirigido por um dos reis e precursores do anti-futebol, do futebol-força, da disciplina controladora, o técnico Yustrich.

Azarar o Flamengo foi fácil, perderam de um a zero para o Corinthians, com gol do ex-banguense, campeão carioca em 1966, Aladim. Tínhamos uma guerra pela frente contra o Atlético Paranaense; a recém fundada “Fôrça Flu”, mesmo sem ainda ter estreado no Maracanã, lotou um ônibus. Entre os amigos tijucanos, meu tio Lorenzo, um dos fundadores daquela Torcida Organizada nascida no dia 25 de novembro daquele 1970, seguiu rumo à capital paranaense. O Fluminense, também já sabendo o que o Internacional havia feito no sábado, entrava em campo necessitado de um empate, somente um ponto. No saldo de gols viria a classificação para o quadrangular final.

E foi tenebroso, com o Flávio machucado (Marco Antonio, lateral artilheiro, também), nossas esperanças de gol se reduziam. Mas, de um time de homens sempre se pode esperar atitudes de homens, sendo que do nada apareceu o Mickey que já havia marcado no empate a um contra o Botafogo, jogo em que o Minuano estava suspenso.

Na capital paranaense começa a transmissão, jogo nervoso, as rádios tremiam, as imaginações infantis se esgotavam a cada minuto. Na mesa da sala daquele apartamento no bairro de Botafogo, os restos de um badejo servido em postas, acompanhados que estávamos pelo imenso som, top, de uma rádio vitrola daquelas ainda valvuladas.

O Fluminense começou a partida a 300 km por hora e logo aos 2 minutos, um a zero, Mickey. Festa. Os caras empatam quase no final do 1º tempo. Silêncio, jogo duro, abduzidos, mais silêncio, o dedão do pé coça, minha primeira superstição, deixa coçar, não posso me mexer.

Quarenta e cassetada do segundo tempo, falta contra nós, o Assis (nosso 4º zagueiro) era foda, arrebentou a jogada, na porrada. Era preciso… Porra cala a boca Mario Vianna (ex-árbitro e primeiro analista de arbitragem da rádio Globo), vai cobrar o Sergio Lopes…

Tum… Tum… Tum… Na imensidão daquele instante, eu olho para o meu pai que olha para o meu avô… A batida forte e descompassadas dos nosso corações.

Sabe aquele dia que você na sua infância descobre que existe uma expressão “com o coração saindo pela boca”? Pois assim foi.

A bola em direção ao nosso gol, só que ali estava o Félix.

Nas palavras de Jorge Curi (um dos grandes narradores de todos os tempos, senão o melhor) uma defesa maior que a de Gordon Banks na passada Copa do Mundo, no lance da cabeçada do Pelé. Pela descrição, o Félix teria voado primeiro para um lado e no meio do caminho tinha sido obrigado a voar para o outro.

Passados mais de trinta anos daquela defesa, em 2001 eu encontrei com o Felix nas Laranjeiras, no recém reformado Bar do Fidélis. Nunca tinha conversado com ele, ajoelhei-me e comecei reverenciando com as mãos, ídolo total, um autêntico Campeão do Mundo. Titular da maior seleção brasileira de todos os tempos. Perguntei por aquela defesa, se realmente havia sido tudo aquilo que noticiaram, os olhos deles se encheram de lágrimas, falou que eu devia ser um guri na época. Nisso acertou, mas o Jorge Curi tinha desenhado aquela imagem na minha cabeça, que foi confirmada pelo autor. O Felix, o meu ídolo de infância, tinha feito uma ponte de 270º. Então fui eu quem chorei de emoção e agradeci. Nisso chegou o roupeiro Ximbica, que reafirmou do alto dos seus (então) 35 anos trabalhando no clube: “foi a maior defesa que eu vi um goleiro fazer”

Com a classificação para as finais, teríamos três jogos decisivos pela frente, Palmeiras, Cruzeiro e Atlético Mineiro. Um tudo ou nada, já havíamos vencido com facilidade jogando o fino, ao Palmeiras e ao Cruzeiro. Mas tomamos um chocolate do Atlético Mineiro, treinado pelo Telê Santana, o responsável, o arquiteto, o gênio que havia inventado, quase dois anos antes, a primeira Máquina do Fluminense que eu vi jogar. No geral, o time da colônia italiana na capital paulista fez mais pontos.

Treze de dezembro de 1970, dia de Santa Luzia, fomos à igreja pela manhã; almoçamos na antiga churrascaria Minuano, no Largo do Machado, que pertencia ao Adriano Rodriguez, primo distante do meu avô paterno que havia falecido seis meses antes na Espanha. Gente galega, Santa Marta de Ribarteme, As Neves.

Para quem não conhece, Santa Marta de Ribarteme, é um dos lugares de maior misticismo de Galícia. Nas festas em homenagem à santa, na procissão o povo carrega caixões de defuntos, que levam dentro pessoas vivas, que em seu dia tiveram graças alcançadas por intermediação da promessa feita, e que dessa forma, pagavam as promessas. Católico? Wicca? Bruxaria? Paganismo céltico?… É melhor simplificar… Fé!

As mulheres foram para a casa da minha avó-madrinha, os homens da família (eu me sentia como um deles) para o Maracanã.

Mais de 50 mil tricolores no estádio Mário Filho, na arquibancada, desde a linha da bandeirinha de corner, diagonal que só quem sentou decifrou. De orelha, diante de mais de cinquenta mil tricolores, o Mickey, decidiu, um a zero, goleada, ganhamos de um super time.

Na quarta-feira, Mineirão, o jogo passou na televisão, o que não era comum para a época. Fazia tempo que no cenário nacional o Cruzeiro se destacava e nessa noite na sua escalação haviam quatro jogadores campeões do mundo pela seleção brasileira (Tostão, Brito, Piazza e Fontana) meses antes no México, sem falar em Dirceu Lopes, Raul, Natal, Zé Carlos. Timaço sem direito à discussões.

Só que havia algo fora do script, a identidade do Fluminense, camisa de peso e de categoria, mas principalmente de time de atitude, macho alfa. Os trinta mil presentes viram um time tricolor certeiro, guerreiro, audacioso. Um a zero na nossa conta com o Mickey decisivo mais uma vez. Temporariamente a camisa nove mudava de dono, mas continuava com cheiro de gol. Felix, Galhardo, Assis e Denílson, impecáveis na arte de defender.

Na quinta-feira pela manhã o centro da cidade do Rio de Janeiro parou, com a chegada dos torcedores tricolores que regressavam de Minas Gerais.

Aos gritos de Flu-mi-nen-se, com um foguetório que despertou ao menos engajado, com uma chuva de papel picado caída do alto dos prédios da avenida Rio Branco. No Jornal dos Sports do dia seguinte, na última página, destaque absoluto, matérias regavam sobre as nossas cabeças o como a torcida do Fluminense, revolucionária, talvez comemorando de forma sarcástica o segundo aniversário do AI-5 ocorrido 3 dias antes, resolveu promover o maior levante não autorizado na cidade. O pó de arroz perfumou a portaria do edifício Avenida Central e a banca do Paschoal virou palanque sem que a Polícia Militar pudesse colocar em prática seus dotes repressivos, na arte de dispersar multidões. E o pior, não conseguiram deter a passeata dos nossos torcedores que se dirigiram ao Aeroporto Santos Dumont, para recepcionar a nossa delegação. O caótico trânsito da avenida Rio Branco, simplesmente parou.

Durante a semana eu havia feito as provas para o Colégio Santo Inácio, as notas saíram, primeiro em Português e segundo em matemática; festa na família. No sábado meu avô me levou para jogar bola no clube. Os sábados eram dias de excelente pelada, para todas as idades, nas quadras laterais do clube e era normal entrar no ritmo às oito da manhã e ficar até às duas da tarde. Só que naquele dia houve uma surpresa. Magnífica. Alguns jogadores do Fluminense estavam jogando uma partida de voleibol. Os gritos do Samarone ecoavam, o que fez o bar da piscina fervilhar. Eram tempos de muita proximidade, de mil e um encontros. O time se concentrava no Hotel Novo Mundo, tinha gente que falava que em dias de jogos importantes o Galhardo ir nadar na praia do Flamengo quase Glória, da mesma forma que tinha um povo que afirmava que o Flávio se dirigia ao gramado das Laranjeiras, colocava várias camisas penduradas sobre a rede do gol e só ia embora quando derrubasse a última camisa pendurada, com a bola de um chute certeiro. Nas Laranjeiras, o clube parecia um palácio com uma freqüência fenomenal. A venda antecipada dos ingressos para o jogo decisivo contra o Atlético Mineiro, tinha sido excelente, a torcida se movimentava, os amigos tijucanos do meu tio Lorenzo mais ainda, afinal de contas a faixa da recém fundada “Fôrça Flu” já estava pronta para ser estreada.

Apesar de que os números frios falam de, oficialmente, 112.402 presentes, todo mundo que lá esteve sabe que haviam mais de cento e quarenta mil testemunhas oculares daquele dia histórico. Entre caronas e penetras, teve muita gente que assistiu ao jogo na marquise dos refletores.

Depois de mais de uma tonelada de pó de arroz, saímos na frente, Mickey, a 9 que tem cheiro de gol, abriu o placar.

Intervalo. Novamente, xixi no copinho do mate (assim como no Fla-Flu de 1969), começa o segundo tempo, ninguém se sentava, eu, já com nove anos, pressentia o valor de uma possível conquista. Como? Fácil. Era só olhar para os olhos do meu pai, do meu avô, dos meus tios, dos amigos tijucanos do meu tio Lorenzo. Todos tinham sangue nos olhos, tipo o meu sangue é teu, Fluminense. Só sei que também haviam punhais carregados entre dentes. Simplesmente estávamos a dois passos de conquistar o título do maior campeonato de todos os tempos do Brasil, onde todos os 22 atletas que conquistaram o Mundial do México, pertenciam à equipes do país.

O tempo não passa, o radinho pesava, Vaguinho, gol dos caras, era um bom time, mais uma grife “Telê Santana”, pressão, Galhardo e Assis, imensos, o garoto Didi correu duas maratonas (também se corria antigamente, também haviam jogadores velozes, rápidos). Meu avô mordia os restos mortais de um charuto, meu tio Antonio Castro Gil repetia: “toca a bola porque essa taça é nossa”. Na estréia da faixa da “Fôrça Flu”, uma torcida empolgada.

Aos trinta e oito do segundo tempo, começam a se levantar os primeiros bandeirões, os gritos, tímidos… “É campeão, é campeão”, a loucura aumenta, todos gritam, todos gritam qualquer coisa, eu também gritei… Cento e trinta e oito mil almas tricolores, quarenta e três minutos, todo mundo de pé, o Maracanã balançava, tremia, muda a música:

“Ai, ai, ai, ai… está chegando a hora, o dia já vem raiando meu bem, eu tenho que ir embora”.

José Favilli Neto, na melhor arbitragem da sua vida, calou o jogo ao apitar o seu final.

É Cam – pe – ão!!!

Novamente sentando nos ombros do meu pai eu também regia a multidão. Lembrei de antes do jogo, passou um cara com um cartaz imenso, num big bunner jurássico, que trazia o cardápio tricolor: Primeiro prato: periquito (o Palmeiras, antes de ser porco); segundo prato: raposa (o Cruzeiro); sobremesa: galo (Atlético Mineiro)… e assim foi a melhor digestão das nossas vidas.

Volta olímpica, na saída meu pai me comprou uma faixa, minha primeira faixa, com aquela vestimenta me transformei em primeiro ministro da minha geração, rumo a Álvaro Chaves. O Cafuringa vinha em cima de um carro dos bombeiros, o gramado asfixiado por uma multidão ávida de comemorações, foguetório. Ao chegar em casa conferi se a vela que eu havia acendido para Santo Antonio estava viva… Não só estava, como ganhou uma irmã, a vela do agradecimento. Eu estava de férias, aquele verão teve um dono, a mão alçada, o V, a paz e o amor.

E esse reinado começou com o Mickey, decisivo, quatro jogos, quatro gols, classificação e título. Para que mais? É nome obrigatório na história.

Artilheiro da Paz e Amor!

E analisando bem, as palavras do Wilson Xavier (dirigente) – ditas antes do campeonato começar, tinham muito mais do que uma simples profecia. Pelo Fluminense coabitavam mentes ilustres como as dos também dirigentes, João Boueri e José Carlos Villela. Sou grato aos que aprovaram a tabela. Nada além disso, o nosso time jogou muita bola. Foram dois anos disputando e ganhando títulos. O Flávio mesmo não tendo disputado 5 partidas foi o 2º artilheiro do campeonato com 11 gols. Éramos muitas crianças felizes, cuja hora do recreio era cópia fiel da que vivíamos no Maracanã.

Artilheiros, ídolos, gols, campeonatos.

Flavio e Mickey: Artilheiros da Paz, Amor e Vitória!”

XXX

“Paz, amor e vitória!” é apenas o capítulo do meu livro “Assim nasce um Guerrilheiro Tricolor”, que qualquer ano desses que virão pela frente, será publicado.

Antonio Gonzalez

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